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Artigo: Sem palavras

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Luís Leiria
04/04/2024

Nos úl­timos meses, emu­deci.

Quando co­meçou o ge­no­cídio ao povo de Gaza, ainda es­crevi, em par­ceria com o Ri­cardo Ca­bral Fer­nandes, este ar­tigo onde ana­li­sá­vamos como o go­verno de ex­trema-di­reita de Is­rael usava a pro­pa­ganda de guerra e a de­sin­for­mação para jus­ti­ficar os crimes contra a po­pu­lação pa­les­tina.

Mas, um dia, a re­a­li­dade tornou-se tão ab­so­lu­ta­mente es­ma­ga­dora que deixei de en­con­trar as pa­la­vras certas para des­crever a bar­bárie de Gaza.

A pro­cissão de crimes de guerra co­me­tidos pelas tropas si­o­nistas au­men­tava di­ante dos olhos do mundo in­teiro sem pro­vocar uma re­ação à al­tura. O as­sas­si­nato in­dis­cri­mi­nado de civis, e prin­ci­pal­mente de cri­anças, nos bom­bar­deios, a des­truição de todas as es­colas do ter­ri­tório, o as­salto aos hos­pi­tais, os bom­bar­deios sobre lo­cais que o exér­cito is­ra­e­lense anun­ciara serem se­guros, a de­su­ma­ni­zação dos pa­les­tinos, a trans­for­mação das ci­dades de Gaza num amon­toado de es­com­bros, nada dei­xando de pé, para que a re­cons­trução tenha um custo in­cal­cu­lável – tudo foi usado por Ne­tanyahu e os seus cúm­plices para atingir o ob­je­tivo de ex­pulsar os mais de dois mi­lhões de pa­les­tinos de Gaza.

Uma nova nakba, uma nova ca­tás­trofe sobre o povo pa­les­tino. É ver­dade que houve cen­tenas de ma­ni­fes­ta­ções em todo o mundo onde se gritou por uma Pa­les­tina Livre e contra os mas­sa­cres, pelo cessar-fogo.

Mas não foram o su­fi­ci­ente. Desta vez era pre­ciso muito mais. Era pre­ciso que o povo nas ruas im­pu­sesse aos seus go­vernos o re­púdio à bar­bárie, a exi­gência do fim do mas­sacre.

Foram poucos os go­vernos que en­du­re­ceram o tom com Ne­tanyahu. Muito menos ainda os que cor­taram re­la­ções co­mer­ciais e/ou rom­peram re­la­ções com Is­rael.

E os Es­tados Unidos man­ti­veram o seu apoio in­con­di­ci­onal ao go­verno de Is­rael, mesmo quando as es­ta­tís­ticas mos­travam a queda das in­ten­ções de voto em Biden. Os pe­didos de Washington para que Is­rael cui­dasse de evitar a morte de civis não pas­saram de cí­nicos la­mentos para con­sumo in­terno. A prova disso é que a Casa Branca ainda re­cen­te­mente aprovou a trans­fe­rência para Is­rael de bi­lhões de dó­lares em bombas e aviões de caça, ao mesmo tempo que pu­bli­ca­mente dizia opor-se ao imi­nente ataque a Rafah.

Os go­vernos da União Eu­ro­peia, para além de uma ou outra frase per­dida num dis­curso, si­len­ci­aram e acom­pa­nharam Biden. Desta forma, a car­ni­fi­cina pros­se­guiu. Pros­segue até hoje.

As novas armas do ge­no­cídio

Quando pen­sá­vamos que já tí­nhamos visto todas as cru­el­dades im­pen­sá­veis e ino­mi­ná­veis, eis que Is­rael aper­feiçoa a efi­cácia da ma­tança, usando armas le­tais, ca­pazes de pro­vocar mortes, não às cen­tenas, mas aos mi­lhares. Trata-se do corte da ajuda hu­ma­ni­tária. É a arma da fome. É deixar os pa­les­tinos de Gaza sem acesso às mí­nimas con­di­ções sa­ni­tá­rias que os pro­tejam das epi­de­mias. É des­truir os hos­pi­tais, matar os mé­dicos, deixá-los sem as mí­nimas con­di­ções de tra­balho.

Ch­ris­topher Lockyear, da ONG Mé­dicos Sem Fron­teiras, com­pa­receu ao Con­selho de Se­gu­rança da ONU para dar um de­poi­mento sobre o que ele, e ou­tros mé­dicos es­pe­ci­a­li­zados em atender zonas de guerra, viram em Gaza. O no­tável de­poi­mento pode ser lido, na ín­tegra, aqui.

Ch­ris­topher Lockyear fala de uma guerra tra­vada “por Is­rael contra toda a po­pu­lação da Faixa de Gaza – uma guerra de pu­nição co­le­tiva, uma guerra sem re­gras, uma guerra a qual­quer preço”.

E en­fa­tiza: “Não restou nada que possa ser cha­mado de um sis­tema de saúde em Gaza. Os mi­li­tares de Is­rael des­man­te­laram hos­pi­tais, um após o outro. O que restou é tão pouco, di­ante de ta­manha car­ni­fi­cina, que é sim­ples­mente ab­surdo”.

E exem­pli­fica: a falta dos mais ele­men­tares ma­te­riais mé­dicos obrigou ci­rur­giões “a efe­tuar am­pu­ta­ções sem anes­tesia em cri­anças”.

Para o di­ri­gente da MSF, “as leis e os prin­cí­pios dos quais de­pen­demos co­le­ti­va­mente para per­mitir a as­sis­tência hu­ma­ni­tária estão agora cor­roídos ao ponto de per­derem seu sig­ni­fi­cado”. E ques­tiona: “Como po­demos ofe­recer ajuda que salva vidas num am­bi­ente onde a di­fe­rença entre com­ba­tentes e civis não é le­vada em conta?”

“Como po­demos manter qual­quer tipo de res­posta quando fun­ci­o­ná­rios de saúde são al­ve­jados, ata­cados e de­mo­ni­zados por atender os fe­ridos?” Volto a in­sistir: leiam a ín­tegra do de­poi­mento.

Não é pos­sível ficar in­di­fe­rente

E per­gunto: Por que o mundo não se le­vanta para deter de uma vez por todas esta car­ni­fi­cina?

Como é pos­sível ficar in­di­fe­rente di­ante do ge­no­cídio? Como se pode ainda dizer que “sim, mas o Hamas…” Esses que ar­gu­mentam com as mortes de civis is­ra­e­lenses co­me­tidas pelo Hamas, no 7 de ou­tubro, pri­meiro 1400, de­pois 1200, agora 1139, das quais 700 civis. Hoje já está con­fir­mado que al­gumas dessas ví­timas foram mortas pelos pró­prios mi­li­tares is­ra­e­lenses, nos ata­ques dos he­li­cóp­teros Apache, os pri­meiros a chegar ao ce­nário, que dis­pa­ravam in­dis­cri­mi­na­da­mente sem poder dis­tin­guir se es­tavam ma­tando re­sis­tentes do Hamas ou re­féns is­ra­e­lenses.

Ou­tras ví­timas is­ra­e­lenses foram alvo das pró­prias tropas de Is­rael que re­to­maram os ki­butzim usando a ar­ti­lharia dos tan­ques sem dis­tin­guir os re­sis­tentes do Hamas dos re­féns. (Sobre o 7 de ou­tubro, re­co­mendo uma in­ves­ti­gação da Al Ja­zeera, que pode ser vista aqui.)

Mesmo que não se queira en­trar na dis­cussão de quem é o opressor e quem é o opri­mido (o que é to­tal­mente evi­dente, mas con­tes­tado pelos si­o­nistas) e sobre o di­reito dos opri­midos à re­sis­tência, devia pelo menos pre­va­lecer um mí­nimo de em­patia hu­mana. O que o Hamas fez foi um ato de re­sis­tência. Con­tes­tável, sem dú­vida, mas po­li­ti­ca­mente jus­ti­fi­cável.

Mas o que está acon­te­cendo em Gaza, ale­ga­da­mente em res­posta aos “crimes do Hamas”, é um ge­no­cídio. As ví­timas são mais de dois mi­lhões de pa­les­tinos en­cer­rados num ter­ri­tório de 365 quilô­me­tros qua­drados.

Mais de dois mi­lhões de pa­les­tinos que não podem sair. Não podem atra­vessar o muro que cerca o ter­ri­tório. Não têm para onde ir. Não há qual­quer lugar onde possam sentir-se se­guros. Serem ou não mortos é uma sim­ples lo­teria. São uma es­pécie de ra­ti­nhos de la­bo­ra­tório para as novas ex­pe­ri­ên­cias de as­sas­si­nato em massa. Quem fica in­di­fe­rente pe­rante isto está a aban­donar a mais ele­mentar hu­ma­ni­dade.

Ca­ramba! Não se co­movem quando há cri­anças pa­les­tinas de cinco anos a dizer que pre­ferem a morte porque per­deram toda a fa­mília? Não se abalam di­ante da no­tícia de que nos úl­timos meses “já não há bebês de ta­manho normal” nas­cendo em Gaza, se­gundo os mé­dicos”? E que au­mentam os na­ti­mortos e as mortes ne­o­na­tais? E que isso é cau­sado, em parte, pela des­nu­trição e de­si­dra­tação das mães?

Mais que nunca, so­li­da­ri­e­dade para travar os ge­no­cidas

Pela minha parte es­tarei, como sempre, na pró­xima ma­ni­fes­tação em Lisboa de so­li­da­ri­e­dade com a Pa­les­tina e por um cessar-fogo ime­diato. Em Lisboa, dia 7 abril às 15 horas, na praça do Mu­ni­cípio.

Este texto re­pre­senta o fim do meu emu­de­ci­mento. Voltei a en­con­trar as pa­la­vras. Não são as frases que eu de­se­jaria compor, não terão cer­ta­mente o efeito que pre­tendia.

Mas con­ti­nu­aria a ficar sem pa­la­vras se não de­sa­ba­fasse. Re­en­con­trei-as.

Luís Leiria é jor­na­lista por­tu­guês.
Pu­bli­cado ori­gi­nal­mente em Es­querda.net.

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