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Cultura? Engolindo amargos, e as frases que ecoam por aí

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Foto: Estado da Arte/Reprodução

Com estilete fino, papel colorido e cola, o artista plástico Mauro Guatelli tece do nada as frases mais bonitas de Grande SertãoVeredas, de Guimarães Rosa. A pretensão é “fincar o pé nonada”, como Guatelli apresenta o álbum Paisagens EmendadasNonada é a primeira palavra de Rosa no livro, travessia, a última, e assim Guatelli percorre a alma do sertão em 44 frases em cartazes espantosos, “passarinho que se debruça, o vôo já está pronto”, “cavalo que ama o dono até respira do mesmo jeito”, “a vida é um vago variado”, “ eu quase não sei mas desconfio de muita coisa”, “natureza da gente não cabe em certeza nenhuma”, “as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas”, “o demônio não precisa existir para haver”. Os cartazes têm sonoridade, cor, beleza e cadência própria, uma releitura pela linguagem desse Brasil profundo, quando não se vislumbrava em 1956, ano em que Grande SertãoVeredas foi lançado, tantas outras frases que desmontariam o edifício democrático.

O álbum recém-lançado de Mauro Guatelli (mmguatelli@gmail.com) é uma obra de arte que faz pensar em frases que temos ouvido:

Do ministro da Educação Milton Ribeiro: “a universidade, na verdade, deveria ser para poucos”, “tem muito engenheiro dirigindo Uber”.

Do ministro da Economia, Paulo Guedes: “tem empregada doméstica indo para Disneylândia… uma festa danada”; e sobre o FIES, “é bolsa para todo mundo”, mencionando o absurdo do filho do porteiro dele ter entrado na universidade. Quando Guedes incluiu o Palácio Capanema numa lista de 2.263 imóveis a serem vendidos no Rio, o arquiteto e antropólogo Lauro Cavalcanti reagiu: “estupidez cultural… descalabro que estamos vivendo no Brasil; é como se Roma resolvesse vender o Coliseu”.

Ressoa nos nossos ouvidos a frase de Regina Duarte ao aceitar a Secretaria Especial de Cultura de Bolsonaro em janeiro do ano passado: “nós vamos noivar, vou ficar noiva… noivo, noivinho”. Bolsonaro se elegeu com a campanha clonada do brado nazista, “Alemanha acima de Tudo (Deutschland über alles), “Brasil acima de Tudo”. Sobre a escolha do “terrivelmente evangélico” André Mendonça para o STF a ser avaliada pelo Senado, o ex-chanceler Celso Lafer escreveu no Estadão (15/8): “a Bíblia não é Constituição”, e ensinou a lição dos Evangelhos, “a César o que é de César, a Deus o que é de Deus”. Sobre a expectativa de golpe, a historiadora Lilia Schwarcz corrigiu: “ele é o golpe”.

Daí para as frases utilizadas pela especialíssima Secretaria de Cultura nas figuras de Mario ex-Malhação Frias, e o número 2, André Porciúncula, foi um passo de gigante. Frias nem sabia quem era Lina Bo Bardi ao representar o Brasil na Bienal de Veneza que homenageou este ano a arquiteta modernista ítalo-brasileira. Mas já arrota frases escarradas do guru Olavo de Carvalho. São do romancista, poeta e crítico de arte inglês G. K. Chesterton, autor de romances policiais e grande frasista. No Twitter, Frias esnoba cultura esfarrapada citando “se verdadeiramente vale fazer uma coisa, vale a pena fazê-la a todo custo”. Porciúncula vai atrás e copia: “há grandes homens que fazem com que todos se sintam pequenos. Mas o verdadeiro grande homem é aquele que faz com que todos se sintam grandes”.

Frias e Porciúncula afirmam que usam Chesterton para a criação de políticas culturais da Secretaria. Coitado de Chesterton. Foi usado para esvaziar e deixar queimar a Cinemateca? Para acabar com a Ancine, a Casa de Rui Barbosa, detonar a Funarte e desfigurar os princípios da Fundação Palmares?
Frias e Porciúncula usam frases porque não conseguem redigir um texto inteiro, pensar um contexto, idealizar um conceito, ter estofo cultural. Autor de Guerra Cultural e retórica do Ódio: Crônicas de um Brasil Pós-Político, João Cesar Castro Rocha diz que o escritor inglês, apologista do catolicismo, veria o Brasil de Bolsonaro como o inferno. Chesterton era anticomunista, mas mesmo antissocialista, condenava o capitalismo selvagem. Adotou o distribucionismo que, como o nome diz, defende a distribuição de riquezas. Nem para formular políticas econômicas deste governo, Chesterton serviria. Muito menos para a descultura atual.

Nossa Secretaria de Cultura faz o contrário de Mauro Guatelli, pega a riqueza do pensamento de Chesterton e a transforma “nonada”. Tiram a beleza, a graça, o destino cultural de um país. E aí vale a pena mergulhar no belíssimo ábum de Guatelli fazendo pensar junto com Guimarães Rosa e Diadorim, “enguli amargo”, “a vida é um vago variado”.

Que nos lembram: “eu queria minha vida própria, por meu querer governada”. “Ou o senhor bendito governa o sertão ou o sertão maldito vos governa”.

Cuidado, “todo caminho da gente é resvalado”. “Viver é muito perigoso”. E se coubesse a Rosa se confrontar com Mario Frias, a frase já viria pronta, como foi usada na abertura do álbum Paisagens Emendadas pela jornalista Mônica Waldvogel: “o senhor carece de um explicado”, secretário.

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Norma Couri é jornalista e Diretora de Inclusão Social, Mulher e Diversidade na Associação Brasileira de Imprensa (ABI).

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